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O apocalipse dos trabalhadores

É impossível não se apaixonar pelo trabalho de valter hugo mãe. Os cuidados com a escrita, com a estética e com o ritmo colocam-no ao lado dos grandes escritores da língua portuguesa. E não é só. Em suas linhas, para além da linguagem, aspira-se uma incrível pureza e uma rara sensibilidade.

apocalipse

“O apocalipse dos trabalhadores” é o quinto livro que leio deste autor que, desde a segunda obra, figura entre os meus favoritos.

O livro conta a história de Quitéria e Maria das Graças, duas amigas que sonham com o futuro, enquanto enfrentam uma dura (e dupla) rotina de trabalho, como empregadas domésticas e como carpideiras, prestando homenagens em velórios.

Maria das Graças, casada, mantém um caso com seu patrão, o senhor Ferreira, e sente-se confusa em relação a seus sentimentos. Crê que o ama; mas, estranhamente, imagina-o como seu futuro assassino. Quitéria, por sua vez, leva uma vida de promiscuidade, até que encontra Andriy, um triste jovem ucraniano que sofre com o passado e com a distância de sua família.

O livro é sensacional. A história das duas mulheres é apenas um pretexto para o seu verdadeiro pano de fundo: o retrato sofrido da classe trabalhadora, de sua vida simples, de sua faina pesada, e de seus sonhos tão singelos quanto difíceis de conquistar. Os pontos altos são muitos, pedido destaque os diálogos imaginários de Maria das Graças com São Pedro e as metáforas protagonizadas pelo cachorro que atende pelo sugestivo nome de Portugal.

Eis alguns trechos:

“sete milhões de ucranianos morreram à fome nos anos trinta e dois e trinta e três do século vinte, e a ekaterina sentava-se à sua mesa como aterrorizada com a falta de sopa por um dia que fosse. para si, a fome era algo que a observava de perto, como se estivesse à espera de uma distração para a abater. a grande fome ucraniana sentava-se todo dia à mesa da ekaterina e do sasha, que ficavam a gerir as sopas, mesmo as mais fartas, com o compromisso de quem, mais tarde ou mais cedo, não teria o que comer. era o século vinte todo em cima de suas cabeças. os sete milhões de mortos à fome, os sete milhões de mortos na segunda guerra mundial, e os mortos mais os afetados pela catástrofe de chernobil. na cozinha dos Shevchenko sentavam-se mais de catorze milhões de mortos a olhar para os pratos de sopa”. (p. 65)

“sossega, graça, sossega. nunca mais falamos de mortos. juro-te. temos de fazer um acordo entre as duas para não chamar-mos a morte para a nossa beira. como achas que isso se faz, perguntou a maria da graça. começamos a gostar mais de viver. não tenho trabalho, quitéria, fiquei sem trabalho. são quatro da manhã, mulher, a esta hora ninguém tem trabalho. preocupa-te com isso a horas de jeito. vou comer sopa para a tua casa. todos os dias. e ainda comes uns bifes de peru, que não sou ninguém de te fechar o frigorífico, amiga. não consigo dormir. nem eu. acende a luz. deixa-me ficar a olhar para o teto. daqui a pouco cansas-te e dormes. fala comigo, diz-me coisas diferentes. fala-me de coisas que pareçam ontem. ontem é que estávamos bem”. (p. 77)

“o são Pedro tinha a voz da agente quental e a maria da graça estava irritada. não me incomode, estou farta de para aqui vir e você nunca me atende. isto é o quê. pagamos todos esta porcaria e tenho meus votos em dia, não hão de ver-me aqui eternamente. não era seguramente uma repartição pública, ou seria. ela pensava duas vezes, claro que havia de ser público tudo aquilo, construído à custa de todas as almas. o céu, obviamente, tinha de obedecer a uma democracia perfeita, preparada para absorver toda a gente e encaminhar até os mais aparentemente imprestáveis. o que seria daquilo se toda as pessoas rebelassem e exigissem um melhor tratamento. até às almas tem de ser conferido o direito ao protesto, que estar-se morto não é sinal de imbecilidade, pensava ela, é claro que estar morto é ainda pensar, pensar mais, porque tudo se decide para sempre, não se pode brincar com uma coisa assim”. (p. 115-16).